Racionais MC’s – Das Ruas de São Paulo pro Mundo

Filme reforça a independência dos Racionais MC’s como donos da sua obra e história

Posted by

O principal veículo de comunicação é o disco. A principal rede social, onde as ideias são debatidas e repercutidas, é o palco. Os Racionais MC’s sempre contaram sua história a sua maneira e com seus próprios meios. O documentário “Racionais MC’s – Das Ruas de São Paulo pro Mundo” (Netflix) é mais um passo nessa trajetória de independência. Nas quase duas horas de filme, não há a presença do especialista em música (para reforçar conceitos e dar seu aval), do estudioso em questões da negritude (para reforçar as ações do grupo em questões acadêmicas) ou qualquer outra figura de fora da “família Racionais”. Simplesmente porque não existe essa necessidade. Se contar uma história de qualquer grupo musical que tem 30 anos de estrada é difícil – inclusive para o próprio grupo –, é melhor que essa missão fique reservada “aos nossos”, como os integrantes dos Racionais fazem questão de reforçar em alguns momentos.

O documentário traça uma linha cronológica para contar essa história, tendo os lançamentos dos discos como marcos. O ouro está em muitas imagens de shows e bastidores, digitalizadas no processo de pesquisa do documentário e inéditas até então. Boa parte das imagens mostra um grupo descontraído, de jovens periféricos vivendo a vida, levando sua arte e cumprindo sua missão – o que contrasta com as caras fechadas das raras aparições midiáticas, outra escolha importante do grupo para que a sua trajetória fosse tão longa.

Muita gente acredita que o artista tem uma ligação espiritual com o seu entorno, que funciona como uma antena que capta sentimentos e reproduz em sua obra. E Racionais é isso. A cada disco, uma mudança de postura, de discurso e de comportamento baseada na realidade, seja macro (situação do país, cenário político) ou micro (o que se passa na quebrada, o que os amigos dizem). Hoje, revendo essa caminhada, é possível pegar cada álbum dos Racionais e dizer o que estava se passando naquele momento histórico. Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay vão reforçando isso com suas falas, contando “causos” de cada época e parando para analisar os momentos em que o som do grupo foi influenciado pelo entorno e quando o contrário também aconteceu. A virada entre Sobrevivendo no Inferno (1997) e Nada Como Um Dia Após O Outro Dia (2002) é o maior exemplo dessa sintonia entre o grupo e o que se passa nas quebradas do Brasil. Sobrevivendo no Inferno, que hoje é cultuado e reverenciado, por pouco não causou a dissolução do grupo. O que era cantado ali tinha um peso tão grande que o caos tomou conta da estrada. Não havia paz num show dos Racionais e os casos de tiroteios (muitas vezes com vítimas) eram amplificados pela mídia, o que aumentava a tensão para o próximo show até chegar num ponto em que o grupo teve de parar suas atividades. O disco falava sobre guerra e causava outras. Hoje, com esse distanciamento cronológico e histórico, é possível entender essa agressividade. Era um disco que falava sobre um massacre de 111 pessoas (número oficial e sempre questionado, bom destacar), condenadas à morte pelo Estado sem direito à defesa. Também era um disco que falava sobre o crack, a então droga do momento, mais uma para desorientar o povo pobre como já havia feito nos Estados Unidos. Sobrevivendo no Inferno, com sua cruz na capa, suas fontes góticas e seus temas, não tinha como ser leve.

Um grupo que é dono de sua própria história é capaz de, num documentário, usar suas próprias músicas para sonorizar acontecimentos importantes, como o fatídico show na Praça da Sé, na Virada Cultural de 2007. “A Praça”, do disco Cores E Valores, surge nos falantes quando as imagens da violência policial aparecem na tela e pouco é dito além disso. A questão se resolve.

Um dos pontos positivos e mais importantes do documentário é a de reforçar a ligação do grupo com suas origens, com a África. Como diz KL Jay no filme, isso nem sempre foi tão claro: “A gente tinha 19 anos. Hoje, com 50, é outra visão”. A visão rasa de parte da crítica musical, que enxergava o rap brasileiro como uma mera cópia dos Estados Unidos, escondia que antes dos EUA havia outras referências. Racionais sempre foi África, sempre foi poder preto. E isso foi tão natural que os próprios integrantes foram se dar conta disso apenas durante a caminhada. O caminho foi sendo construído dia a dia, a missão mudava conforme o que o tempo pedia e os fãs seguiam sendo fãs. E não é fácil ser fã de Racionais. Um disco ia se sobrepondo a outro mudando tantas características do som que o primeiro movimento era de repulsa. Cada disco dos Racionais precisou ser defendido pelos fãs que tinham uma visão mais ampla da coisa. Até hoje, oito anos depois do lançamento de Cores E Valores, ainda é possível ver gente torcendo o nariz para o trabalho e preferindo o disco anterior.

“Racionais MC’s – Das Ruas de São Paulo pro Mundo” traz uma visão ampla da trajetória. Tecnicamente, faltou identificar as imagens inéditas – uma legenda com ano e local já resolveria a questão e colocaria o telespectador de forma mais clara na linha do tempo. Seria legal saber, por exemplo, de que ano é o vídeo em que Mano Brown fala que se espelha no show do Public Enemy, com os integrantes saindo de trás de um telão, mas mostra o palco em que os Racionais iriam tocar mais tarde, de madeira não muito confiável e de, no máximo, 15 metros de largura. “Essa é a realidade”, diz Brown. Curiosamente, na atual turnê, o grupo sai de “dentro” de um telão. Quantos anos os Racionais MC’s levaram para conquistar isso?

É importante que as histórias brasileiras sejam contadas. “Racionais MC’s – Das Ruas de São Paulo pro Mundo” serve para quem quer entender mais um pouco do Brasil, das dinâmicas das periferias. E entender que a importância do rap para uma massa que ainda não tem voz. A missão ainda não acabou.

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *