“Marighella”, o filme sobre o homem leal

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O primeiro arrepio foi causado pelos tambores da Nação Zumbi, quando Chico Science entoa “(Monólogo ao Pé do Ouvido) Banditismo Por Uma Questão de Classe” em uma das cenas iniciais do filme e o grupo de Carlos Marighella rouba um trem repleto de armas. “O homem coletivo sente a necessidade de lutar”, diz Science. “Viva Zapata! Viva Sandino! Viva Zumbi! Antônio Conselheiro! Todos os Panteras Negras! Lampião, sua imagem e semelhança”, segue o pernambucano, na primeira faixa de seu primeiro disco. Foi assim que mundo conheceu Science e foi assim que o mundo conheceu “Marighella”, primeiro filme de Wagner Moura como diretor.

E Moura começa bem. As referências mais claras são as que chegam pelas suas atuações em “Tropa de Elite” e “Narcos”. O ritmo não deixa perceber as 2h35 de poltrona no cinema. Das imagens poéticas e sensíveis da relação de Marighella com o filho até as porradas e cenas graficamente mais fortes do delegado do DOI-CODI muito bem interpretado por Bruno Gagliasso, o filme flui de maneira natural.

Se o filme começa com Chico Science, termina com “Mil Faces De Um Homem Leal (Marighella)”, dos Racionais MC’s. A música foi composta para o documentário “Marighella”, de 2012, da diretora Isa Grinspum Ferraz e com narração de Lázaro Ramos. À época, Brown comentou que não conhecia a história de Carlos Marighella e se tornou um admirador. E isso acendeu um alerta: as histórias dos revolucionários brasileiros precisavam de mais luz. No mesmo ano de 2012, foi lançada a biografia “Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo”, do jornalista Mário Magalhães, resultado de nove anos de pesquisa e que serviu como base para o longa de Moura. Mano Brown estava escalado para ser o próprio Marighella nesse filme e chegou a participar da primeira fase de ensaios. Mesmo elogiado por seus colegas (e por Wagner Moura), o rapper definiu que ainda não era o momento de encarar tal empreitada e preferiu se dedicar à produção e lançamento do seu primeiro álbum solo, “Boogie Naipe”, em dezembro de 2016.

“Marighella” faz a escolha de não explicar as origens do personagem – na tela, ele já nasce pronto para a luta. Fica a torcida para essa lacuna ser motivo para que mais gente pesquise sobre sua história. Carlos Marighella era uma pessoa extremamente inteligente e sensível – atuou na política institucional como parlamentar antes da luta armada e também era poeta. No filme, essa inteligência surge por meio do humor. Em meio ao ritmo intenso e à realidade tensa, Seu Jorge, com ares de improviso, consegue encaixar piadas, tiradas e cenas cômicas – a cena do elevador sobre a “sensualidade do homem de peruca” arrancou risos de toda a sala. Uma forma sutil de apresentar a inteligência de um personagem: Ele consegue rir e fazer rir em situações adversas.

Outro detalhe sutil foi a utilização dos nomes reais dos atores que fazem parte da célula de Marighella na Aliança Libertadora Nacional (ALN, aquela sigla que passou meio batido nas aulas de História do Brasil). Numa época e numa situação em que o nome real das pessoas era esquecido, Bella é Bella Camero e Humberto é Humberto Carrão, por exemplo. Os dois em atuações brilhantes.

É difícil falar sobre esse filme sem ligá-lo automaticamente ao momento atual do Brasil – até porque o longa demorou para chegar às telas do país, enquanto brilhava em festivais mundo afora, por conta de uma censura burocrática imposta pela ANCINE sob um governo nada afeito à democracia. Na cena que aparece em meio aos créditos, os atores cantam o Hino Nacional como se o pegassem de volta, já que o movimento que toma conta do país hoje o tomou pra si, assim como a bandeira do Brasil. Marighella amava o Brasil. Tanto que fez a escolha de trocar sua família pela luta. O “homem leal” percebe que o maior ato de amor por seu filho e sua família é tentar, ao menos, garantir um futuro para o país em que eles vão viver – mesmo que ele próprio não viva. “O homem coletivo sente a necessidade de lutar” é a resposta para aqueles que, em comentários de redes sociais, dizem coisas como “meu avô viveu durante a Ditadura e não se meteu em confusão”. Talvez o avô do comentarista tenha sido um covarde. E tudo bem, cada um cumpre o seu papel na sociedade. Assim como o papel de um determinado sujeito foi gritar “Fora, Bolsonaro!” na sala de cinema, antes de depois da exibição do filme. Não o conheço, não sei se ele faz mais que isso na vida real, fora da confortável sala de cinema na região da Paulista. Assim como o papel de outras pessoas foi deixar seus copos de refrigerante e seus restos de pipoca no assento, sem ter a coragem de levar o lixo produzido para o devido lugar. Não sei se essas pessoas têm alguma pretensão revolucionária, mas seria interessante começar pela própria vida e seus costumes.

Outros arrepios se seguiram durante “Marighella”. Também se juntaram frustração, ódio e outros sentimentos menos nobres. Até que ponto a poesia resolve? Quando devemos partir dela para a ação? Se o longa nem mostra a face poética de Marighella, talvez o recado esteja dado. “Mais ação, por favor”.

Hoje, 4 de novembro, faz 52 anos que o revolucionário Carlos Marighella foi brutalmente executado pelas forças policiais, em local público, em São Paulo.

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