Série sobre o Spotify reflete o caos dos dias atuais com choque de gerações e o dinheiro “infinito” das big techs

Série sobre o Spotify reflete o caos dos dias atuais com choque de gerações e o dinheiro “infinito” das big techs

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Está na Netflix desde o fim de 2022 a série “The Playlist” (“Som na Faixa”, no título traduzido e adaptado para português) que conta a história do Spotify. É mais uma dessas séries que misturam fatos e nomes reais com ficção, causando uma confusão mental em quem assiste. Afinal, é documentário ou é ficção? Até onde o fato vai e onde a ficção começa? Os seis episódios de cerca de 50 minutos cada são baseados no livro “Spotify Untold”, dos jornalistas Sven Carlsson e Jonas Leijonhufvud, que ouviram centenas de pessoas para contar a história do aplicativo, da ideia até o começo dos anos 2020, quando o livro foi lançado. Talvez a leitura desse livro complemente a experiência da série para saber o que realmente foi contado pelos personagens envolvidos. Mas vamos à série.

Cada episódio é baseado num personagem e ele traz consigo cada uma das faces e dos desafios desse negócio. Um ponto positivo, desde o começo, é a não-romantização de Daniel Ek, cofundador da empresa. Não tem aquela história do jovem-solitário-no-quarto-escuro-solicionando-problemas-da-humanidade, mas sim um cara dos negócios, que havia acabado de vender uma empresa por US$ 10 milhões para o excêntrico Martin Lorentzon. Os dois se conhecem e, provocado por Martin, Daniel pensa em lançar um site/aplicativo que funcionasse como o Pirate Bay, mas que remunerasse os artistas conforme os anúncios que aparecessem na tela. E tome aqui mais US$ 12 milhões para iniciar o negócio – essa versão da história, com mais detalhes, surge apenas no episódio 5, baseado em Martin.

A ideia de recontar a história a cada episódio até chegar no ponto da linha do tempo onde o episódio anterior largou – e seguir a partir dali – é boa, mas confunde em alguns momentos. No episódio 3, por exemplo, baseado na história contada a partir do ponto de vista da advogada que assume o jurídico da plataforma, é usado um artifício de filmá-la num mesmo corredor com cada porta sendo um lugar diferente – uma porta é o escritório de advocacia onde ela trabalhava, outra porta é o Spotify, outra porta é o apartamento de outro advogado que a aconselha, e assim por diante. Talvez uma ferramenta para cortar custos, já que o orçamento da série é infinitamente menor do que o da empresa-tema da história. Mas confunde e nos deixa sem saber o rumo da história por alguns segundos. Um ponto forte desse modo de contar a história é o de uma única cena ganhar pontos de vista diferentes, continuações com detalhes que um personagem viu e que passou despercebido por outro etc. Nesse sentido, a série pede um pouco de foco. Não dá pra ver navegando no celular.

No fim se repetem alguns estereótipos já conhecidos e com os quais a gente pode topar a qualquer momento pela rua ou em nossos trabalhos: o jovem milionário teimoso (ou obstinado, que não larga suas convicções, como queira), o empresário excêntrico e festeiro, o jovem nerd-gênio da computação (que desenvolve a plataforma do jeito que o jovem milionário quer e depois rompe relações), a jovem advogada que procura desafios… e a palavra “jovem” aparece aqui repetidas vezes porque é isso: a série é, além da empresa Spotify, sobre o bom e velho choque de gerações. Um jovem chega com uma ideia para a indústria musical, que tem seus poderosos com uma média de idade muito mais alta do que a dele. A indústria musical não foi até ele pedir ajuda, ele que, por si, a propôs, sem conversar ou negociar – isso vem depois, como a série mesmo, e quase derruba o projeto todo. Daniel chega para um executivo de gravadora e ouve a frase “você não vai estragar um mercado que levamos anos para construir”. Pouco tempo depois, o próprio Daniel repete frase parecida quando é confrontado pela lei: “Não vão tomar o que construí”. É, sim, sobre o choque geracional e sobre a fogueira das vaidades que preenche a indústria musical, com seus personagens excêntricos, que tomam decisões importantes baseados apenas em opinião pessoal e não em estudos, que levam rancor e diferenças pessoais para a mesa de negociações – afinal, quem é esse “moleque” pra me dizer o que fazer, diria qualquer executivo de gravadora nesse momento.

Outro detalhe curioso. A série fala sobre a indústria musical (entre outras coisas, como já vimos), correto? Chega a ideia, ela é apresentada para a indústria, chegam as questões legais, a estrutura do negócio, os sócios… mas e o artista? A figura que inicia o movimento de toda a roda vem apenas no último episódio. Porque na lógica do novo mercado é assim: primeiro você pensa no que fazer, faz e depois pergunta para os envolvidos se está tudo bem. A série cria uma artista fictícia chamada Bobbi T que, na história, é uma amiga de infância de Daniel Ek. Ela aparece em outros episódios, mas tem seu protagonismo no fim para chamar a atenção de que nada está bem. Na boca de Bobbi são colocadas todas as reclamações dos artistas sobre a plataforma, especialmente, claro, a remuneração. Mas também no fato de gravadoras serem sócias do aplicativo, entre outras distorções que fazem com que o dinheiro não chegue, de fato, para quem sustenta a plataforma: a criatividade.

“The Playlist” é ampla e pode ser usada tanto por coaches em suas palestras motivacionais para falar sobre determinação e empenho, assim como pode ser usada como exemplo de como as chamadas big techs inflam o mercado com um dinheiro que não existe – esse vem-e-vai, sobe-e-desce de ações que passam pelas mãos de traders e gente que, na realidade, e brinca com o dinheiro. O lance precisa ser conversado com todos os envolvidos, mas a pressa dos dias atuais não permite. A série tenta mostrar quem está saindo perdendo, mas a conclusão parece ser individual.

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