Placa de "proibido retornar"

Os motocas e a vida no ponto de não-retorno

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Viver nesses tempos atuais nos passa um sentimento de eterno “ponto de não-retorno”, aquele lugar de onde não se tem volta e tudo degringola, pra diversos assuntos. De meio ambiente a bebês reborn no SUS, passando pela Inteligência Artificial aliada à Burrice Natural e a crise humanitária que atinge São Paulo e seus não-moradores, os em situação de rua. Tudo parece ser uma bomba relógio prestes a explodir.

Um desses temas é o dos motocas e todas as suas vertentes, um exemplo vivo (ou não, de acordo com os números que veremos a seguir) de todo mal que causa a precarização do trabalho, o constante incentivo ao empreendedorismo a todo custo e o desespero das pessoas por uma vida melhor.

Segundo o DETRAN, foram 483 mortes de motociclistas apenas na cidade de São Paulo no ano de 2024 – pouco mais de uma por dia. Para 2025, é esperada uma queda, mas que não deixa o número total muito longe de um por dia. Em todo o Brasil, foram cerca de 150 mil motociclistas internados por conta de acidentes em 2024 – até novembro, gerando um custo de R$ 233,3 milhões ao SUS – e viva o SUS!

Os números são sempre frios e claro que os entregadores e mototaxistas não ocupam 100% deles, até por ser uma estatística difícil, já que são profissionais que também usam suas motos nos raros momentos de descanso e seu trabalho é intermitente: se não entrou chamado e ele está só se locomovendo, a responsabilidade é toda dele. É um trabalho sem marcação de ponto, uma das “amarras” citadas nos rasos discursos anti-CLT que pegam essa galera em cheio.

Eu, como pedestre, sou impactado por essa precarização do trabalho quando tento atravessar qualquer rua do meu bairro. O Tatuapé, Zona Leste de São Paulo, tem muitos restaurantes com grande demanda e os motocas têm que cumprir sua meta mesmo não sendo, oficialmente, empregados. Então, dá-lhe fina, desrespeito ao farol de pedestre e todo o tipo de absurdo. Os raros motocas que param no farol no espaço delimitado, sem invadir a faixa de pedestres, merecem aplausos. É preciso ter paciência e muito cuidado.

Agora, como resolver essa situação? As leis que cobrem esse tipo de trabalho são antigas e as novas ideias que surgem no legislativo já chegam contaminadas pelo lobby de grandes empresas que dominam o setor. No judiciário, temos um presidente do STF que comparece a um jantar “beneficente” realizado pelo CEO do ifood e faz questão de aparecer dançandinho, cantandinho e sorridente em vídeos como se estivesse num karaokê com amigos. E, dias depois, participa de um congresso em que diz que o Brasil tem “preconceito com a iniciativa privada”, que gera mais riqueza do que o Estado”, e, por isso, não cresce o quanto poderia. E mais: “O Estado deveria participar apenas da distribuição de riqueza”, mas aqui “se judicializa tudo”. Bom, temos um agente do mercado na presidência do STF – que discute e decide sobre questões importantes que envolvem essas mesmas empresas que se autointitulam “facilitadoras” da relação entre o entregador e o “contratante”, mas ficam com o bolo milionário que sai dessa relação.

Enquanto isso, boa parte da mídia se empolga com matérias sobre empreendedorismo, incentivando a ida para esse universo rico em oportunidades como se isso fosse uma simples escolha. Na Páscoa, teve telejornal dando receita de ovo de Páscoa. “É fácil fazer um dinheiro, gente, só seguir as dicas. E cuidado pro chocolate não perder o ponto”, disse um sorridente repórter que parecia dar a solução para todos os problemas da dona de casa – sempre ela, já não basta trabalhar em casa. E não é raro ver nas redes os famigerados prints de ganhos diários do pessoal que é motorista de aplicativo, que trabalhou de 12h a 14h e botou na conta um valor “muito maior do que os CLT”. Mesmo tirando os custos fixos de um automóvel, o que sobra ainda não contempla Vale Refeição e Alimentação, plano de saúde, FGTS e seguro desemprego. Sai tudo do próprio bolso. Dia desses, um motoca se gabava da liberdade que é ser empreendedor, mas um dado não bateu: disse trabalhar 12h por dia, mas que agora tinha mais tempo pra ele e pra família. As pessoas se enganam com o que tem na mão e, assim como parte da Classe Média que odeia ver pobre ganhando algum, tem também o pobre que agora só está preocupado em zoar o primo que é CLT – mesmo que ele esteja afundado e servindo a um sistema que o oprime.

Mas o lance é não odiar a vítima. Mesmo nesse cenário que não mostra um horizonte muito bom, a gente tem que se lembrar do humano que existe por baixo do capacete e do macacão. Lembrar de pedir coisas em lugares que tenham entrega própria ajuda um pouco, já que costumam pagar mais e não ter um ritmo tão frenético. A relação mais próxima de quem pede com o local também ajuda a resolver problemas sem depender de plataformas que não conseguem te atender direito. E caso peça em app e more em prédio, dê aquela descidinha antes do interfone tocar? Já que a gente não pode fazer muita coisa no macro, pelo menos ajuda o motoca. De repente ele consegue se livrar do trabalho 10 minutos antes e alivia.

Como dizem na internet: viver momentos históricos cansa demais.

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