Procure saber o quanto isso não faz sentido numa democracia

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Caetano Veloso no programa Vox Populi

Você já parou para pensar no trabalhão que é produzir uma biografia? Estando o personagem vivo ou morto, é preciso muita pesquisa, apuração e centenas de entrevistas. Um fato pode ser contado de várias formas por diversas fontes. Cabe ao biógrafo colher o maior número de vozes para que não sobrem farpas no final do processo. E é difícil chegar a uma biografia que não seja chapa-branca – já vi muito repórter se apaixonar pela história da personagem de um perfil, quanto mais um biografado, quando o mergulho nessa história e seus desdobramentos é mais profundo.

No último final de semana, a Folha de S. Paulo publicou uma reportagem sobre o Procure Saber, grupo de artistas que tenta mudar o rumo das biografias no Brasil. Presidido pela produtora Paula Lavigne, o Procure Saber tem como membros mais atuantes Caetano Veloso, Roberto Carlos, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Chico Buarque e Djavan. O grupo quer resguardar o direito de imagem dos artistas e proibir a comercialização de biografias. Mas eles não são tão ruins e abrem até uma brecha para biografias lançadas de forma gratuita na internet ou usadas exclusivamente em pesquisas. Segundo Paula Lavigne, biógrafos enriquecerem às custas dos livros lançados e lucrarem sobre a história dos outros não é justo.

Oras, afinal, o que é o jornalismo? Eu, como repórter, ganho um salário para contar histórias. Geralmente de pessoas. Ou seja, estou “lucrando” com histórias alheias. E sobre o fato de “enriquecer”… um amigo biógrafo teve que vender o carro para bancar o lançamento de um dos seus livros. A não ser que ele tenha vendido uma Ferrari, essa conversa de que pessoas enriquecem escrevendo biografias é pura balela.

O mais curioso é ver nomes como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque apoiando essa história. Três dos artistas que sofreram com a censura do Regime Militar. E agora quem se arriscar a escrever sobre as suas gloriosas vidas corre o risco de sentar no banco dos réus, já que as suas histórias são de única e exclusiva propriedade dos seus respectivos artistas. Vale lembrar que o próprio Caetano Veloso já se arriscou pelos campos da biografia com seu “Verdade Tropical” (2008). Todos os citados no livro foram consultados e deram a devida autorização? O livro deve ter vendido bem… todos receberam uma porcentagem ou Caetano “enriqueceu” sozinho nessa?

Sobre Roberto Carlos, então, é melhor nem falar. Assim como Pelé, é um Rei que é mestre na área em que atua, mas quando vai para outras especialidades só faz besteira. Robertão é craque nos discos e Pelé foi craque nos campos. Poderiam ter se reduzido a isso.

Em 2006, muito antes de existir o equivocado Procure Saber, o historiador Paulo Cesar de Araújo sentiu a força de Roberto Carlos sobre os petulantes que arriscavam escrever sobre sua vida e obra sem a devida autorização. Seu livro “Roberto Carlos em Detalhes” foi recolhido de todas as livrarias do país após um processo que ameaçou de fechamento a editora responsável pela publicação.

A discussão sobre biografias é velha. Em 1990, uma biografia de Noel Rosa foi proibida porque citava o suicídio de parentes do sambista. Caso encerrado.

Em 2007, estive na FLIP e uma mesa se encarregou de discutir esse problema. Chamada de “A Vida Como ela Foi”, a mesa recebeu o autor do ainda recém-proibido livro sobre Roberto Carlos, Paulo Cesar de Araújo, Ruy Castro (que também já teve uma biografia sobre Garrincha recolhida) e Fernando Morais. Reproduzo abaixo alguns trechos desse papo, cujo conteúdo vem de encontro diretamente ao o que está sendo discutido hoje. Apenas procure saber.

Frases
“Eu entendo que o Roberto não tem muita afinidade com o objeto livro. Ele mesmo disse que não leu a obra, mas, mesmo assim, a proibiu” – Paulo Cesar de Araújo
“Posso ser aniquilado financeiramente, agonizar em praça pública, mas já estou preparando minha defesa com minha própria advogada e vou até o fim!” – Paulo Cesar de Araújo
“Imagine se hoje eu fizer um livro sobre o Getulio Vargas. Terei de pedir autorização para os seus tataranetos a fim de não ser processado por uso indevido de imagem” – Fernando Morais
“Isso torna o trabalho do biógrafo completamente impraticável no Brasil” – Ruy Castro
“A Hillary Clinton, candidata à presidência dos E.U.A., tem sete biografias não autorizadas publicadas. Todas falando mal. Se ela resolver processar algum dos biógrafos, ela perde a eleição” – Ruy Castro
“Sei que já andaram inserindo trechos no livro que eu não escrevi. E isso é perigoso. É mais um motivo para a obra original voltar para as livrarias” – Paulo Cesar de Araújo sobre o fato de sua obra estar na internet.
“O mesmo juiz que proíbe nossos livros é o que vai para a cadeia no dia seguinte, por ter recebido propina” – Fernando Morais

Trechos

A audiência que deu vitória de causa para Roberto Carlos transcorreu em clima de puro terrorismo. Antes mesmo de começar, o juiz ameaçou o proprietário da Editora Planeta, que publicou o livro, de fechamento da sua empresa. Araújo acredita que, por isso, não houve protestos dos advogados da editora e a derrota foi aceita sem alarde. O próprio historiador teve de fazer as suas defesas nos pontos em que se achava demasiadamente prejudicado, principalmente quando, por exemplo, queriam proibi-lo até de falar publicamente sobre a obra. “Eu vou passar o resto da minha vida falando sobre esse livro”, disse para o juiz. Ao término da audiência, o juiz tirou um CD de uma pasta e se apresentou ao Roberto Carlos como cantor. “Por favor, ouça esse CD e me dê a sua opinião”, teria dito a Roberto. Até Araújo ganhou uma cópia do CD do juiz-cantor, numa situação surreal. Antes de ir embora, arrasado, ainda presenciou o juiz e os funcionários do fórum da Barra Funda, em São Paulo, pedindo uma sessão de fotos com Roberto Carlos. Tietagem é pouco para definir.
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Outro bilhete [da plateia] perguntava se Paulo César Araújo ainda ouvia Roberto Carlos. Para responder, ele usou como exemplo a sua filha, de cinco anos. Assim que a citou, Araújo parou de falar. Extremamente emocionado, ficou alguns segundos em silêncio… A voz não saia. O que restou à plateia foi aplaudi-lo. “Sempre que saía para pesquisar sobre o Roberto, dizia para minha filhinha que estava indo encontrá-lo e que ele faria uma música para ela. Escondido, pegava um CD. Na volta, colocava a música para tocar e confirmava que ele havia feito para ela. Depois do processo, ela continuava ouvindo Roberto, mas só as músicas que ele havia ‘feito’ para ela. Perguntei o por que e ela respondeu: ‘Não gosto mais dele, mas essa música ele fez antes de te processar’”. Mais do que respondido. Mais aplausos.

(se você tiver tempo e paciência pode ler a íntegra do texto sobre essa mesa da FLIP, escrito por este foca, acesse esse link: https://www.marcoslauro.jor.br/flipmesa6.pdf)

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